Fonte: www.teoriaedebate.org.br
Usuários do metrô de São Paulo, em dia de chuva e caos
Foto: Miguel Schincariol/Folhapress
O colapso da mobilidade urbana no Brasil é uma função crescente da motorização. Apesar de alcançarmos taxa nacional ainda baixa, menos de quatro carros ou motos por dez pessoas, contra oito por dez nos países de renda alta1, os níveis de congestionamento, os tempos de viagens por distância percorrida e o número de vítimas graves ou mortes no trânsito são no Brasil muito superiores. Algumas cidades europeias adotam medidas restritivas ao uso do automóvel. Aqui, por ausência de um transporte público qualificado, quando adotadas são meramente punitivas da mobilidade dos que não têm renda para confrontá-las.
A mudança do nosso padrão de mobilidade impõe a quebra de três paradigmas: o transporte motorizado individual como solução universal para os deslocamentos urbanos, o transporte público como bem de mercado e sua tarifa como custo médio por passageiro pagante2.
O automóvel e a motocicleta são modalidades de transporte ineficientes pelo consumo elevado de combustível e de espaço por passageiro transportado e pela externalização negativa, também mais elevada, de poluição atmosférica e de vítimas de acidentes de trânsito. Os investimentos em infraestrutura viária para o automóvel são cada vez mais dispendiosos e mais rapidamente inúteis, além de destrutivos dos espaços urbanos de convivência e de circulação a pé. O automóvel não é um bem passível de universalização sem um transporte urbano qualificado, que responda pelo volume mais significativo dos deslocamentos pendulares3.
As motocicletas, ao contrário do que aparentam, também consomem mais espaço por passageiro transportado, e sua eficiência relativa no padrão brasileiro de mobilidade é driblando o congestionamento pela contravenção, dirigindo sem observar as distâncias de segurança frontais e laterais. E o custo social está posto nas vidas perdidas ou afetadas gravemente, nas operações de resgate, nas emergências médicas e na ocupação cada vez mais significativa dos leitos hospitalares, além do custo do agravamento dos congestionamentos provocados pelos acidentes. Motocicleta é um modo de transporte originalmente da Ásia, onde se movimenta como pedestre ou ciclista. Não é um meio de transporte seguro, que pretende ser um “automóvel” esperto, mas vulnerável, sem os requisitos crescentes de segurança aos novos veículos. As razões que levam a sociedade a proibir a produção, comercialização e consumo de drogas ou de armas não são mais relevantes que aquelas que deveriam proibir as motocicletas, em lugar de incentivá-las. Mas, além dos interesses da indústria e do comércio, a motocicleta, como motofretes e, absurdamente, até mototáxis, já se engendrou na economia urbana, inclusive em função da mobilidade exaurida nos congestionamentos.
Apesar de o transporte público ser definido pela Constituição Federal como bem público, equivocada e desnecessariamente o modo de produção, a concessão, acabou por descaracterizá-lo como tal. Bem público não é apenas um conceito jurídico. Bens públicos e bens de mercado são bens diferenciados pela natureza da produção e do consumo. Enquanto para a economia de mercado a exclusão é inerente e existencial – sem exclusão não existe mercado4 –, bens públicos são bens universais, em que a exclusão é inaplicável ou ineficiente, além de perversa.
Tarifas sob a lógica de mercado
Tarifas, tax price, preços estabelecidos para bens públicos, observam princípios da política fiscal e regência de produção econômica5. Não é o “mercado” que determina o que e quanto produzir, nem a oferta e a demanda determinam a tarifa. A sociedade, dentro de seu sistema político, regulamenta a concessão e define o gasto público. O orçamento da unidade de produção, escola, hospital, metrô ou ônibus, deve assegurar, entre outros atributos de qualidade, a suficiência e regularidade da oferta. A combinação gratuidades, tarifas pagas pelos usuários diretos e indiretos, como os empregadores no vale-transporte, e aportes orçamentários observará o princípio da justiça fiscal, capacidade contributiva, e o da relação entre a área de benefício e a de contribuição, que norteia a política fiscal. Não é razoável que o cidadão de Belo Horizonte subsidie o transporte público de Brasília, ou vice-versa. Os impostos aplicados no transporte público beneficiarão a economia urbana, e não somente seus usuários. Amplia-se a mobilidade da força de trabalho e dos consumidores, e, em consequência, a eficiência da economia de mercado.
Na trajetória de controle das empresas de ônibus, difundiu-se a metodologia de cálculo de custos padronizados, denominando-se “tarifa” o custo médio por passageiro pagante transportado6. A consequência é que tarifas assim determinadas estabelecem uma lógica de mercado. E, pior, de um mercado imperfeito, pelo monopólio natural nas concessões7. Não se pode melhorar a qualidade – maior oferta em trens e ônibus produzidos para transportar pessoas no ambiente urbano – porque aumenta o custo, e portanto o custo médio, a tarifa. O aumento de qualidade e custo tem de ser compensado por um número igual ou superior de passageiros pagantes, de forma a que o custo médio se mantenha. A redução contínua do número de passageiros pagantes impõe o aumento das tarifas, custo médio, ou a redução dos custos totais, por redução da oferta ou de sua qualificação.
Por essa ordem de coisas, o Brasil utiliza chassi de caminhão no seu transporte público8, mas fabrica ônibus de piso baixo, com suspensão a ar e transmissão automática para o mercado externo. Cerca de 35% da população nos grandes centros anda a pé ou de bicicleta por exclusão do transporte público em função das tarifas e da má qualidade.
Os usuários do transporte público são os menos pobres, os inabilitados para o transporte individual e os gratuitos. Quando a renda cresce, o usuário, habilitado ou habilitável, se liberta do transporte público, ruim e “caro”. Como bem de mercado, o transporte público é o que se denomina “bem inferior”, que é substituído com o crescimento da renda.
Mobilidade e renda
A grande transformação da população brasileira nos oito anos do governo Lula, classificada por renda e consumo, tem profundas implicações sobre a mobilidade urbana, como se extrai da análise socioeconômica da pesquisa de origem e destino de São Paulo em 2002. Em função do aumento real do salário mínimo, do Bolsa Família e do aumento do emprego formal, e, assim, do vale-transporte, cresce o número de usuários provenientes das classes E e D. Entretanto, essas classes decrescem em tamanho na população brasileira. O crescimento mais expressivo da classe C, a classe média, significa substituição do transporte coletivo pelo transporte individual. O vale-transporte deixa de ser benefício quando próximo ou inferior a 6% do salário do trabalhador. O aumento de renda permite ao passageiro “cativo” libertar-se do transporte público. As classes B e A não são significativamente usuárias do transporte público.
Assim, nossa política de mobilidade urbana segue em direção diametralmente oposta à da mobilidade socioeconômica, da política de crescimento da renda e de sua melhor distribuição, que todos desejamos e a presidenta Dilma Rousseff priorizou em seu discurso de posse.
O gráfico Índice de Mobilidade, Modo e Renda9 mostra que nosso modelo de mobilidade não é democrático: quanto menor a renda, menor o índice de mobilidade. Em 2002, 60% dos deslocamentos das pessoas com renda familiar mensal até R$ 400 eram a pé. Com o aumento da renda, aumenta a mobilidade, aumenta a mobilidade motorizada e cai a mobilidade a pé. A partir da faixa de R$ 1.600 a R$ 3 mil mensais, continua crescendo o índice de mobilidade, mas caem as viagens pelo transporte coletivo, substituído pelo individual motorizado. A pesquisa é de 2002, mas com certeza seu perfil segue verdadeiro.
Em suma, produzimos transporte público para a classe D e transporte privado para C, B e A. Em A, obviamente, cada vez mais helicópteros, individuais ou consorciados. O transporte público, “produto para pobres não muito pobres”, ganha passageiros na ascensão da classe E para D e perde na ascensão de D para C.
Crescem o transporte privado, os congestionamentos e as demandas por investimentos viários destrutivos e inócuos. O transporte motorizado individual é mais ineficiente: consome mais combustível, mais espaço e mais vidas! Consumirá cada vez mais tempo, no paradoxo da velocidade: carros mais rápidos10 desenvolvendo velocidade cada vez menor.
Quebra de paradigmas
A quebra dos três paradigmas impõe uma profunda transformação institucional. O projeto de lei de diretrizes para o transporte público em tramitação no Congresso Nacional é uma carta de princípios sem mecanismos para implementá-los e até com algum vício da cultura de mercado11 que contaminou o setor. Não foi assim que procedeu a Europa após a Segunda Guerra Mundial, quando da expansão da indústria automobilística. Reforçaram os sistemas de transporte público com leis fiscais que aumentaram a dotação de recursos para subsidiar a operação e permitir investimentos em sua modernização e expansão.
A tarifa deve ser reduzida para universalizar o acesso à cidade e induzir o uso do transporte público de forma competitiva com os outros meios motorizados menos eficientes do ponto de vista da contabilidade social. A tarifa zero dos idosos deve ser universalizada para os jovens, dando-lhes mobilidade, acesso à cidade e os afeiçoando ao transporte público.
A tarifa não se confunde com a remuneração do operador12, público ou privado, que deve ser suficiente para assegurar a produção qualificada e atrair investimentos em para a melhoria e expansão do transporte público. Não se viabilizará parceria público-privada para investimentos na implantação de linhas e sistemas de metrôs e VLTs (Veículos Leve sobre Trilhos) com a lógica de remuneração da tarifa “custo médio por passageiro pagante”. Somente concessões patrocinadas serão suficientemente atraentes para trazer recursos significativos para um transporte público suficiente, qualificado e universal.
Aumentar o número dos que não pagam e cobrar menos do que custa dos que pagam, oferecendo um transporte cada vez mais qualificado, é injetar na economia urbana renda monetária com uma expressão tão significante quanto no Bolsa Família, a cuja política se agrega.
A população brasileira é dominantemente urbana. A requalificação da mobilidade urbana recupera eficiência na economia das grandes cidades. A migração de atividades das metrópoles para o interior e a mobilidade baseada no automóvel e na moto levam a ineficiência para os centros urbanos médios e pequenos. Congestionamentos e acidentes de trânsito vão se difundindo pelas cidades brasileiras, grandes ou pequenas.
A quebra dos paradigmas impõe uma reforma fiscal que vincule impostos, cobrados localmente, à produção de transporte público13. E uma política industrial que estimule a fabricação de ônibus híbridos14 de piso baixo integral, de trens metropolitanos, metrôs e VLTs, para uma resposta ágil e vigorosa à demanda derivada da nova política urbana. Os pilares da política econômica anticíclica foram fixados corretamente no mercado interno, construção civil, eletrodomésticos e, lamentavelmente, mas decorrente do modelo industrial e de mobilidade, na indústria automobilística, incluindo motos. A presença inexpressiva de projetos de transporte público nos gargalos a serem eliminados pelo PAC demonstra a inviabilidade do transporte público como configurado na economia brasileira. O PAC Mobilidade Grandes Cidades, além de tímido frente à gravidade do problema, e fora de uma requerida visão de longo prazo, exemplifica, no rol dos projetos apresentados, as limitações estruturais da lógica vigente.
Corredores segregados de ônibus são soluções inteligentes, quando bem inseridos no meio urbano construído, mas se esgotam para volumes de demanda mais expressivos. Cidades do porte de Curitiba, que concebeu e aplicou de maneira abrangente o sistema15, inclusive com definições de ocupação urbana, demandam sistemas metroviários para estabelecer uma oferta qualificada. BRT (bus rapid transit) em cidades do porte de São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Salvador, Fortaleza e Brasília, só complementares a uma rede metroviária abrangente e estruturadora.
Não significa, contudo, que os esforços de mobilização social e política para a reversão desse contexto econômico submetam os governos locais a uma política de espera. Ou a investimentos no modelo de mobilidade insustentável, implantando novas vias expressas, viadutos e trincheiras, destrutivos do ambiente urbano e imediatamente espaços dos novos congestionamentos.
Transporte como bem público
O transporte público como bem público, orçamentário, exige que sua produção seja eficiente e otimizada. O planejamento da rede de transporte, única, sistêmica, para todo o espaço urbano ocupado, sem fronteiras políticas nas aglomerações urbanas e áreas metropolitanas, com intermodalidade, incluindo modos privados e não motorizados, exige consorciação intermunicipal, com efetiva e qualificada gestão pública.
Em consequência dessas condicionantes, se almejamos resgatar o transporte público como bem público, devemos começar a estabelecer as bases organizacionais do sistema ainda sob a regência da tarifa custo médio. Esta é a agenda que se apresenta às cidades, aos aglomerados urbanos e às metrópoles brasileiras: criar as bases institucionais e físicas para um sistema integrado de transporte público com efetivo controle social.
Recife e o governo de Pernambuco estão investindo nessa direção com o consórcio metropolitano de transporte. Resta inserir mais direta e explicitamente o metrô do Recife, empresa federal sem gestão local16 e sem dar visibilidade de sua eficiência e contribuição ao sistema integrado de transporte (SIT). Além da produção de transporte, sua contribuição é também financeira, na medida em que a tarifa do metrô é fortemente subsidiada pelo governo federal e contamina positivamente as tarifas de ônibus. Quanto do subsídio federal cobre ineficiências da empresa e quanto beneficia os usuários do SIT? A evolução qualitativa da gestão do Consórcio Grande Recife, incluindo a empresa pública Metrorec como concessionária a ele submetida, pode fornecer um projeto-piloto nacional para o transporte público de mobilidade sustentável. Da “cidade para todos” que só um transporte público qualificado, competitivo com o transporte individual privado e efetivamente acessível, possibilita.
João Luiz da Silva Dias é economista, conselheiro do Ruaviva – Instituto da Mobilidade Sustentável. Foi diretor-presidente da Companhia de Transportes Públicos da Região Metropolitana de Belo Horizonte (Metrobel), da Empresa Municipal de Transportes e Trânsito (BHTrans) e da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU)
A mudança do nosso padrão de mobilidade impõe a quebra de três paradigmas: o transporte motorizado individual como solução universal para os deslocamentos urbanos, o transporte público como bem de mercado e sua tarifa como custo médio por passageiro pagante2.
O automóvel e a motocicleta são modalidades de transporte ineficientes pelo consumo elevado de combustível e de espaço por passageiro transportado e pela externalização negativa, também mais elevada, de poluição atmosférica e de vítimas de acidentes de trânsito. Os investimentos em infraestrutura viária para o automóvel são cada vez mais dispendiosos e mais rapidamente inúteis, além de destrutivos dos espaços urbanos de convivência e de circulação a pé. O automóvel não é um bem passível de universalização sem um transporte urbano qualificado, que responda pelo volume mais significativo dos deslocamentos pendulares3.
As motocicletas, ao contrário do que aparentam, também consomem mais espaço por passageiro transportado, e sua eficiência relativa no padrão brasileiro de mobilidade é driblando o congestionamento pela contravenção, dirigindo sem observar as distâncias de segurança frontais e laterais. E o custo social está posto nas vidas perdidas ou afetadas gravemente, nas operações de resgate, nas emergências médicas e na ocupação cada vez mais significativa dos leitos hospitalares, além do custo do agravamento dos congestionamentos provocados pelos acidentes. Motocicleta é um modo de transporte originalmente da Ásia, onde se movimenta como pedestre ou ciclista. Não é um meio de transporte seguro, que pretende ser um “automóvel” esperto, mas vulnerável, sem os requisitos crescentes de segurança aos novos veículos. As razões que levam a sociedade a proibir a produção, comercialização e consumo de drogas ou de armas não são mais relevantes que aquelas que deveriam proibir as motocicletas, em lugar de incentivá-las. Mas, além dos interesses da indústria e do comércio, a motocicleta, como motofretes e, absurdamente, até mototáxis, já se engendrou na economia urbana, inclusive em função da mobilidade exaurida nos congestionamentos.
Apesar de o transporte público ser definido pela Constituição Federal como bem público, equivocada e desnecessariamente o modo de produção, a concessão, acabou por descaracterizá-lo como tal. Bem público não é apenas um conceito jurídico. Bens públicos e bens de mercado são bens diferenciados pela natureza da produção e do consumo. Enquanto para a economia de mercado a exclusão é inerente e existencial – sem exclusão não existe mercado4 –, bens públicos são bens universais, em que a exclusão é inaplicável ou ineficiente, além de perversa.
Tarifas sob a lógica de mercado
Tarifas, tax price, preços estabelecidos para bens públicos, observam princípios da política fiscal e regência de produção econômica5. Não é o “mercado” que determina o que e quanto produzir, nem a oferta e a demanda determinam a tarifa. A sociedade, dentro de seu sistema político, regulamenta a concessão e define o gasto público. O orçamento da unidade de produção, escola, hospital, metrô ou ônibus, deve assegurar, entre outros atributos de qualidade, a suficiência e regularidade da oferta. A combinação gratuidades, tarifas pagas pelos usuários diretos e indiretos, como os empregadores no vale-transporte, e aportes orçamentários observará o princípio da justiça fiscal, capacidade contributiva, e o da relação entre a área de benefício e a de contribuição, que norteia a política fiscal. Não é razoável que o cidadão de Belo Horizonte subsidie o transporte público de Brasília, ou vice-versa. Os impostos aplicados no transporte público beneficiarão a economia urbana, e não somente seus usuários. Amplia-se a mobilidade da força de trabalho e dos consumidores, e, em consequência, a eficiência da economia de mercado.
Na trajetória de controle das empresas de ônibus, difundiu-se a metodologia de cálculo de custos padronizados, denominando-se “tarifa” o custo médio por passageiro pagante transportado6. A consequência é que tarifas assim determinadas estabelecem uma lógica de mercado. E, pior, de um mercado imperfeito, pelo monopólio natural nas concessões7. Não se pode melhorar a qualidade – maior oferta em trens e ônibus produzidos para transportar pessoas no ambiente urbano – porque aumenta o custo, e portanto o custo médio, a tarifa. O aumento de qualidade e custo tem de ser compensado por um número igual ou superior de passageiros pagantes, de forma a que o custo médio se mantenha. A redução contínua do número de passageiros pagantes impõe o aumento das tarifas, custo médio, ou a redução dos custos totais, por redução da oferta ou de sua qualificação.
Por essa ordem de coisas, o Brasil utiliza chassi de caminhão no seu transporte público8, mas fabrica ônibus de piso baixo, com suspensão a ar e transmissão automática para o mercado externo. Cerca de 35% da população nos grandes centros anda a pé ou de bicicleta por exclusão do transporte público em função das tarifas e da má qualidade.
Os usuários do transporte público são os menos pobres, os inabilitados para o transporte individual e os gratuitos. Quando a renda cresce, o usuário, habilitado ou habilitável, se liberta do transporte público, ruim e “caro”. Como bem de mercado, o transporte público é o que se denomina “bem inferior”, que é substituído com o crescimento da renda.
Mobilidade e renda
A grande transformação da população brasileira nos oito anos do governo Lula, classificada por renda e consumo, tem profundas implicações sobre a mobilidade urbana, como se extrai da análise socioeconômica da pesquisa de origem e destino de São Paulo em 2002. Em função do aumento real do salário mínimo, do Bolsa Família e do aumento do emprego formal, e, assim, do vale-transporte, cresce o número de usuários provenientes das classes E e D. Entretanto, essas classes decrescem em tamanho na população brasileira. O crescimento mais expressivo da classe C, a classe média, significa substituição do transporte coletivo pelo transporte individual. O vale-transporte deixa de ser benefício quando próximo ou inferior a 6% do salário do trabalhador. O aumento de renda permite ao passageiro “cativo” libertar-se do transporte público. As classes B e A não são significativamente usuárias do transporte público.
Assim, nossa política de mobilidade urbana segue em direção diametralmente oposta à da mobilidade socioeconômica, da política de crescimento da renda e de sua melhor distribuição, que todos desejamos e a presidenta Dilma Rousseff priorizou em seu discurso de posse.
O gráfico Índice de Mobilidade, Modo e Renda9 mostra que nosso modelo de mobilidade não é democrático: quanto menor a renda, menor o índice de mobilidade. Em 2002, 60% dos deslocamentos das pessoas com renda familiar mensal até R$ 400 eram a pé. Com o aumento da renda, aumenta a mobilidade, aumenta a mobilidade motorizada e cai a mobilidade a pé. A partir da faixa de R$ 1.600 a R$ 3 mil mensais, continua crescendo o índice de mobilidade, mas caem as viagens pelo transporte coletivo, substituído pelo individual motorizado. A pesquisa é de 2002, mas com certeza seu perfil segue verdadeiro.
Em suma, produzimos transporte público para a classe D e transporte privado para C, B e A. Em A, obviamente, cada vez mais helicópteros, individuais ou consorciados. O transporte público, “produto para pobres não muito pobres”, ganha passageiros na ascensão da classe E para D e perde na ascensão de D para C.
Crescem o transporte privado, os congestionamentos e as demandas por investimentos viários destrutivos e inócuos. O transporte motorizado individual é mais ineficiente: consome mais combustível, mais espaço e mais vidas! Consumirá cada vez mais tempo, no paradoxo da velocidade: carros mais rápidos10 desenvolvendo velocidade cada vez menor.
Quebra de paradigmas
A quebra dos três paradigmas impõe uma profunda transformação institucional. O projeto de lei de diretrizes para o transporte público em tramitação no Congresso Nacional é uma carta de princípios sem mecanismos para implementá-los e até com algum vício da cultura de mercado11 que contaminou o setor. Não foi assim que procedeu a Europa após a Segunda Guerra Mundial, quando da expansão da indústria automobilística. Reforçaram os sistemas de transporte público com leis fiscais que aumentaram a dotação de recursos para subsidiar a operação e permitir investimentos em sua modernização e expansão.
A tarifa deve ser reduzida para universalizar o acesso à cidade e induzir o uso do transporte público de forma competitiva com os outros meios motorizados menos eficientes do ponto de vista da contabilidade social. A tarifa zero dos idosos deve ser universalizada para os jovens, dando-lhes mobilidade, acesso à cidade e os afeiçoando ao transporte público.
A tarifa não se confunde com a remuneração do operador12, público ou privado, que deve ser suficiente para assegurar a produção qualificada e atrair investimentos em para a melhoria e expansão do transporte público. Não se viabilizará parceria público-privada para investimentos na implantação de linhas e sistemas de metrôs e VLTs (Veículos Leve sobre Trilhos) com a lógica de remuneração da tarifa “custo médio por passageiro pagante”. Somente concessões patrocinadas serão suficientemente atraentes para trazer recursos significativos para um transporte público suficiente, qualificado e universal.
Aumentar o número dos que não pagam e cobrar menos do que custa dos que pagam, oferecendo um transporte cada vez mais qualificado, é injetar na economia urbana renda monetária com uma expressão tão significante quanto no Bolsa Família, a cuja política se agrega.
A população brasileira é dominantemente urbana. A requalificação da mobilidade urbana recupera eficiência na economia das grandes cidades. A migração de atividades das metrópoles para o interior e a mobilidade baseada no automóvel e na moto levam a ineficiência para os centros urbanos médios e pequenos. Congestionamentos e acidentes de trânsito vão se difundindo pelas cidades brasileiras, grandes ou pequenas.
A quebra dos paradigmas impõe uma reforma fiscal que vincule impostos, cobrados localmente, à produção de transporte público13. E uma política industrial que estimule a fabricação de ônibus híbridos14 de piso baixo integral, de trens metropolitanos, metrôs e VLTs, para uma resposta ágil e vigorosa à demanda derivada da nova política urbana. Os pilares da política econômica anticíclica foram fixados corretamente no mercado interno, construção civil, eletrodomésticos e, lamentavelmente, mas decorrente do modelo industrial e de mobilidade, na indústria automobilística, incluindo motos. A presença inexpressiva de projetos de transporte público nos gargalos a serem eliminados pelo PAC demonstra a inviabilidade do transporte público como configurado na economia brasileira. O PAC Mobilidade Grandes Cidades, além de tímido frente à gravidade do problema, e fora de uma requerida visão de longo prazo, exemplifica, no rol dos projetos apresentados, as limitações estruturais da lógica vigente.
Corredores segregados de ônibus são soluções inteligentes, quando bem inseridos no meio urbano construído, mas se esgotam para volumes de demanda mais expressivos. Cidades do porte de Curitiba, que concebeu e aplicou de maneira abrangente o sistema15, inclusive com definições de ocupação urbana, demandam sistemas metroviários para estabelecer uma oferta qualificada. BRT (bus rapid transit) em cidades do porte de São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Salvador, Fortaleza e Brasília, só complementares a uma rede metroviária abrangente e estruturadora.
Não significa, contudo, que os esforços de mobilização social e política para a reversão desse contexto econômico submetam os governos locais a uma política de espera. Ou a investimentos no modelo de mobilidade insustentável, implantando novas vias expressas, viadutos e trincheiras, destrutivos do ambiente urbano e imediatamente espaços dos novos congestionamentos.
Transporte como bem público
O transporte público como bem público, orçamentário, exige que sua produção seja eficiente e otimizada. O planejamento da rede de transporte, única, sistêmica, para todo o espaço urbano ocupado, sem fronteiras políticas nas aglomerações urbanas e áreas metropolitanas, com intermodalidade, incluindo modos privados e não motorizados, exige consorciação intermunicipal, com efetiva e qualificada gestão pública.
Em consequência dessas condicionantes, se almejamos resgatar o transporte público como bem público, devemos começar a estabelecer as bases organizacionais do sistema ainda sob a regência da tarifa custo médio. Esta é a agenda que se apresenta às cidades, aos aglomerados urbanos e às metrópoles brasileiras: criar as bases institucionais e físicas para um sistema integrado de transporte público com efetivo controle social.
Recife e o governo de Pernambuco estão investindo nessa direção com o consórcio metropolitano de transporte. Resta inserir mais direta e explicitamente o metrô do Recife, empresa federal sem gestão local16 e sem dar visibilidade de sua eficiência e contribuição ao sistema integrado de transporte (SIT). Além da produção de transporte, sua contribuição é também financeira, na medida em que a tarifa do metrô é fortemente subsidiada pelo governo federal e contamina positivamente as tarifas de ônibus. Quanto do subsídio federal cobre ineficiências da empresa e quanto beneficia os usuários do SIT? A evolução qualitativa da gestão do Consórcio Grande Recife, incluindo a empresa pública Metrorec como concessionária a ele submetida, pode fornecer um projeto-piloto nacional para o transporte público de mobilidade sustentável. Da “cidade para todos” que só um transporte público qualificado, competitivo com o transporte individual privado e efetivamente acessível, possibilita.
João Luiz da Silva Dias é economista, conselheiro do Ruaviva – Instituto da Mobilidade Sustentável. Foi diretor-presidente da Companhia de Transportes Públicos da Região Metropolitana de Belo Horizonte (Metrobel), da Empresa Municipal de Transportes e Trânsito (BHTrans) e da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU)